quarta-feira, 8 de julho de 2009

O último baile da Ilha Fiscal

Chovia muito naquele sábado de manhã. Chovia tanto que deu aquela preguiça enorme de colocar o focinho para fora. Mas não teve jeito. Max levantou, espreguiçou-se lentamente e caminhou para o jardim.
Ele não gostava nada de chuva. Nem de banho. Nem de cheiro de alho e barulho de moto.
No terraço, Max sentou, olhando a chuva cair, pesada, fria, molhada. Era sábado e o dia era daqueles compridos, daqueles que não acaba mais. Como uma gota longa que escorre no vidro. Como uma lambida de gato.
Mais tarde, um raio de sol deslizou entre as nuvens. Max saiu do torpor e foi caminhar, sem pressa, na grama molhada. Numa bromélia arreganhada tinha uma mosca. Uma mosca com patas e asas, como todas as moscas.
Mas essa mosca falava e disse:
- Ei, você aí! Viu minha frasqueira?
Max pensou que não era com ele. Moscas não falam.
- Você mesmo, peludão, tu viu minha frasqueira?
Era com ele mesmo. A mosca estava falando com Max.
- Eu não sei nada de frasqueira e moscas não falam.
- E quem disse que gato fala?
- Moscas não têm frasqueiras
- Você viu ou não minha frasqueira?
- Claro que não, mas para que você quer uma frasqueira?
- Não é uma frasqueira, matuto, é a minha frasqueira, a minha frasqueira de perfumes.
- Perfumes?
- Sim, perfumes. Vou ao baile da Ilha Fiscal, e ainda estou cheirando a cocô. Cocô de gato, fedido.
- Ah, desculpe, deve ser meu.
- É seu sim. Cocô de gato é como queijo francês. Fede mas é bom demais.
- Como você se chama mosca?
- Marília, e você, peludo?
- Prazer Marília, eu sou o Max.
- Prazer Max. Você me ajuda a procurar a minha frasqueira?
Max começou pela cozinha, depois foi ao quarto, entrou debaixo da cama, por cima da estante do corredor, na banheira, debaixo do piano. Marília sobrevoou pelos lustres, entrou na máquina de lavar, na lixeira da copa.
Mas nada de frasqueira.
- O que vou fazer? É a última festa da Ilha Fiscal. Não posso ir desse jeito. Como é que você foi cagar tão gostoso, seu gato cagão!
- Desculpe, Marília. É que tinha um salame jogado na pia, ontem.
- Um salame? Na pia? Meu Deus, o salame da pia! É isso!
- O que foi?
- O salame da pia, minha frasqueira está lá!
Em um piscar de olhos, Max e Marília já estavam na pia. Mas cadê o salame? Nada de salame. O salame não estava mais lá.
- O salame sumiu, esbravejou Marília.
- Que salame? Ah sim, o salame.
Marília se pôs a chorar. Como choram as moscas quando estão tristes. Histericamente. Max também chorou. Como choram os gatos. Silenciosamente.
- Marília, pera aí, o salame, você esqueceu a frasqueira no salame, certo?
- Sim, ontem eu vi aquele salame na pia e, como eu estava com pressa, larguei a frasqueira e dei uma lambida na gordurinha do salame.
- Mas eu comi o salame, Marília. Não vi frasqueira nenhuma lá. Será que comi a sua frasqueira junto?
- Você comeu a minha frasqueira?Você comeu a minha frasqueira, seu gato nojento, fedido, peludo!
- Acho que sim.
- E agora? O baile?
- Eu tive uma idéia
- Desde quando gatos têm idéias?
- Desde quando moscas têm frasqueiras?
- Você é um gato maldito, fedido e peludo.
- Não sou fedido.
- É sim fedido.
- Não sou, você é que é fedida porque come cocô.
- O seu cocô, fedido como você.
- Não sou fedido.
Foi assim que a briga começou. Primeiro foram só trocas de gentilezas. Acabou nas patas. Max e Marília brigaram muito. Até que num acesso de raiva, Max comeu Marília.
Chovia muito naquela tarde de sábado. Max estava cansado. Deitou-se na varanda da casa e dormiu.
E Marília, a mosca?
Chovia muito naquela noite de sábado. Marília encontrou sua frasqueira mas perdeu a hora com um resto de salame na barriga de Max e se atrasou para o último baile da Ilha Fiscal.
(Fernand Alphen)

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ELIZABETH SECKLEN

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"o luxo é uma válvula de escape tão indispensável à atividade humana quanto o repouso, o esporte, a reflexão (ou a oração)." Jean Castarède