quinta-feira, 28 de maio de 2009

terça-feira, 19 de maio de 2009

Minha Casa

Se um dia você não estiver muito mal-humorado, com a cabeça pendendo para baixo e caladão num canto, você tem que vir me visitar.
Para deixar você com água na boca e balançando os pezinhos de ansiedade, vamos fazer de conta que você acaba de chegar, na imaginação.
Eu venho receber você no ancoradouro. O sol ainda está meio baixo, por cima do mar, mas já faz carinho na pele. Vou lhe dar a mão para descer do barco e, com um sorriso maroto, vou beliscar a ponta do seu nariz. Aqui no meu país é assim que damos as boas-vindas.
Vamos caminhar no pontilhão de madeira silenciosamente, cadenciando os passos ao ritmo da maré que gargareja na baía dourada. Depois, vamos subir o caminho de terra. Na primeira curva tem um bambuzal. Vamos dar uma parada discreta para olhar o mar que filtra espelhinhos de luz entre as folhas. Vale suspirar porque, a cada sopro que você der, jangadas minúsculas irão surgir, arrepiando a água azul, lá em baixo.
Vamos em frente e agora é preciso arregaçar as calças para atravessar o rio escuro. Cuidado para não escorregar nas pedras. No meio, tem uma pedra chata. Vamos sentar ali, um pouco. Você está vendo ali em cima, por cima daqueles arbustos acrobáticos? As frutas dessa mangueira são mágicas. Fazem você ver estrelas mais azuis, mais vermelhas, mais amarelas.
Na outra margem, o solo é liso e quente. Podemos tirar os sapatos e arrastar a planta do pé, patinando levemente, como se estivéssemos dançando. Quanto mais devagar, melhor, porque, a cada escorregada, uma nota vai despontar no céu, longa, firme. E, se você acompanhar o meu ritmo com cuidado, vai ser como se de repente mil orelhas pipocassem no seu corpo. Você vai ouvir sons que arrepiam o coração.
Lá em cima fica a minha casa. Já estamos chegando. Só falta mesmo atravessar a floresta de cipó e passar as mãos para sentir como eles se enroscam na sua nuca, correr pelo gramado com a boca bem aberta para sorver o vento de hortelã com canela e pular as doze cercas, prestando atenção aos gritinhos e prazer que as flores dão quando voamos por cima de seus pistilos coroados.
Pronto. Seja bem-vindo à minha casa. Não precisa agradecer. Ela é sua, todos os seus cantos e encantos.
Quando é que você vem?

Fernand Alphen

segunda-feira, 18 de maio de 2009

L’oiseau de Pernambouc

Acariciando o queixo, desenhava com uma mão, assuntando com as tripas e respirando com o coração.
Horas a fio pesquisava, firmava o traço e os rabiscos soluçavam sobre o papel.
Quando se deu por satisfeito, no quarto silencioso, um enorme sorriso iluminou o papel. A carta estava encerrada. Mandaria no dia seguinte.
Todas as cartas de amor são parecidas. Dizem as mesmas coisas, repetem as mesmas palavras, as mesmas superfícies e idênticos conteúdos.
Cartas de amor não dizem nada. Cartas de amor são palavras parasitas. Tal qual um vírus inanimado quando solto no ar, manifestam-se quando penduram seus mistérios no receptor.
E, quando encontram o único e adequado terreno, meu Deus, o que é essa avalanche? Meu Deus do céu, faça-me ser o escravo dessa química!
De que me importa o Deus do céu, quando se ama?

segunda-feira, 11 de maio de 2009

“A Prazerosa”

Tá na hora, tá na hora! Os beliches tremeram, os corredores foram invadidos instantaneamente, elevadores lotados, escadarias apinhadas. Quantas pernas habitam um formigueiro?
Pernas botadas disciplinam a saída. Pernas descalças ritmam a evacuação. Não tem chororô. Todo mundo a postos para o trabalho. Vida de formiga é assim mesmo. “Bem unidos façamos uma terra sem amos.”
Lá fora, o dia já tingia as primeiras sombras no chão.
A ordem era atacar uma roseira desavergonhada, uma roseira petulante no meio do jardim. Ela já estava no ponto, havia alguns dias, mas o manacá tinha dado mais trabalho do que o previsto.
Em fila indiana, a massa pisoteou a terra e enfurnou-se num túnel gramado para chegar ao pé lascivo que dardejava desafiadoramente sua verdura.
Os batedores espalharam-se pelo canteiro. A precaução era de circunstância. O mundo não está fácil, e roseiras gostosas são raras.
Era um trepidar infindável de pernas, acelerado, frenético.
Não houve um único intervalo, uma única parada para respirar, bater papo ou fazer xixi.
Quando avistaram o tronco espinhudo da messalina, a soldadesca acelerou o passo. Era preciso chegar logo, começar logo o trabalho.
A roseira era frondosa. O dia ia ser curto para dar cabo de tanta luxúria.
O esquadrão abre-alas, composto de formigas acrobáticas, lançou-se na escalada.
Era preciso mapear o alvo.
Rapidamente os planos de ataque foram traçados, esmiuçados, decorados.
A subida foi finalmente ordenada. Para o alto. Folhas tenras primeiro. Ia ser uma festa, um orgasmo coletivo, uma orgia selvagem.
Mas, quando a primeira observadora chegou ao cume da vagabunda, da roseira, um grito foi ouvido. Um grito de desespero. De pavor. Instantaneamente o formigueiro, que já enegrecia
o tronco, paralisou de espanto.
Não havia mais uma única folha viva: um demônio obeso, peludo, uma larva vermelha havia deflorado a roseira oferecida.
Acordar cedo, trabalhar duro de nada ajudou as formigas: retornaram com fome e sem tesão.
Já a larva tarada, num arroto vegetal, padeceu de indigestão.
E a rosa, a rosa safada, aguardou para dar-se noutra florada.

(Histórias para ex-crianças – Fernand Alphen)

ELIZABETH SECKLEN

Minha foto
"o luxo é uma válvula de escape tão indispensável à atividade humana quanto o repouso, o esporte, a reflexão (ou a oração)." Jean Castarède